O GT Rua para Pessoas foi criado pelo prefeito José Fortunati para estudar e implementar a fase 1 de um projeto proposto pela Mobicidade de ampliação dos espaços para pedestres no Centro Histórico de Porto Alegre, notadamente nas ruas Dr. Flores, Vigário José Ignácio e Marechal Floriano (confira galeria de imagens abaixo). Entretanto, a pressão da comunidade foi vista por Glênio Viana Bohrer do Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais (GADES), nomeado coordenador do GT pelo prefeito, como oportunidade para desenterrar alguns projetos já existentes de remodelação das ruas do centro.
As reuniões do GT têm mantido o foco na análise desses projetos e proposições de algumas modificações pontuais. Embora esses projetos possuam vários pontos positivos, como o afunilamento e o nivelamento da via com o passeio nos cruzamentos, eles possuem outros pontos que são opostos à idéia da Mobicidade de ampliar o espaço destinado aos pedestres e desestimular o uso do automóvel particular, como a abertura de uma via com duas faixas (6m de largura) no atual calçadão da Rua da Praia para circulação de veículos à noite e a ampliação das vagas de estacionamento também no período noturno. O problema desse tipo de medida, é que para funcionar depende do respeito dos condutores pela sinalização e de fiscalização constante.

Atualmente a rua Vigário José Ignácio já funciona nesse modelo — só é permitida a passagem de automóveis particulares e o estacionamento após às 19h — mas o que ocorre é que temos carros estacionando e circulando por ali o dia inteiro. Segundo Glênio, para dar certo, a implementação teria que ser acompanhada de uma campanha de educação e fiscalização intensiva no local — o problema é que até hoje, não temos um único exemplo de campanha de educação ou fiscalização realizada pela EPTC que tenha dado resultados a longo prazo. O exemplo mais significativo, a campanha da mãozinha que tinha como objetivo o respeito à faixa de segurança pelos motoristas, foi descontinuada pelo poder público e esquecida pela população.
Bohrer afirma que a circulação de carros em baixa velocidade traria segurança à noite e poderia evitar o esvaziamento do centro depois de determinado horário. No entendimento da Mobicidade, essa é uma medida arriscada e ineficiente.


Segundo estudo de 2003 feito pela própria EPTC apenas 14,74% das pessoas acessam o centro de carro, portanto, o esvaziamento noturno seria mais uma conseqüência da falta de transporte público nesse horário do que da falta de vagas de estacionamento. Ainda, acreditamos que o que dá segurança à noite é a circulação de pessoas que caminham pela rua. Quando elas se deslocam de automóvel até a porta do seu imóvel ou sua garagem as ruas ficam mais vazias — fato observado facilmente em bairros de maior poder aquisitivo, onde quase todos possuem carro próprio, como Moinhos de Vento, Montserrat, Bela Vista, etc. À noite, com raras exceções onde há presença de bares, restaurantes e casas noturnas, as ruas desses bairros são completamente vazias, embora haja geralmente estacionamento permitido ao longo de toda a via e passagem de veículos o tempo inteiro. Em contraste, usuários do transporte público costumam fazer trajetos mais longos a pé, gerando movimento pelas ruas que passam.
Existem outras maneiras de incentivar a vida noturna no Centro sem necessariamente estimular o uso do automóvel particular. Vamos listar aqui algumas possíveis medidas:
- Programas de incentivo à diversificação dos estabelecimentos comerciais da região — pode-se criar um programa para dar vida noturna ao Centro Histórico incentivando as novas instalações de restaurantes, lancherias, cafés, bares e casas noturnas que abram no período da noite — esse programa pode ter incentivos como redução de taxas, facilidade e agilidade na emissão das licenças, etc.;
- Qualificação e iluminação adequada dos espaços públicos — espaços públicos confortáveis e adequados para se caminhar e estar, com iluminação adequada, jardins, assentos e demais mobiliário urbano atraem as pessoas para a rua;
- Uso de parklets, decks e mesas no passeio público em determinados horários — é possível estudar a liberação para estabelecimentos comerciais instalarem parklets, decks, ou ao menos colocarem cadeiras e mesas na via pública depois de determinado horário. Existe um grande número de lanchonetes e bares na região que se beneficiariam da medida e em troca gerariam mais movimento na rua à noite, aumentando a segurança dos transeuntes;
- Intensificação e a qualificação do transporte público noturno — atualmente Porto Alegre sofre um toque de recolher entre os últimos horários de ônibus (em torno das 23h) e os primeiros horários de ônibus do dia seguinte (em torno de 5h, 6h da manhã). A ampliação dos horários e uma qualificação das paradas de ônibus (proteção contra o clima, assentos e iluminação) é uma medida mais eficiente para atrair pessoas que aumentar o número de vagas para automóveis particulares. A adoção de bilhetes únicos mensais também incentivará mais as pessoas a deslocarem-se pela cidade, sem ter que pagar a mais por isso;
- Atividades culturais — é possível atrair pessoas para o Centro fora dos horários comerciais através de atividades culturais e incentivando a ocupação dos espaços públicos. Viradas culturais, shows ao ar livre, teatro, atividades circenses, aulas públicas, feiras e briques, projeções de filmes, performances artísticas, etc.;
- Incentivo à comida de rua — incentivar que peruas e carrinhos que oferecem comida a preços acessíveis freqüentem o Centro à noite, bem como a nova moda de comida gourmet servida em traileres, pode ser um estímulo para que as pessoas permaneçam na região até mais tarde e ocupem as ruas.

Existem outras medidas possíveis também, que não listamos aqui. O fato é que autorizar a circulação de carros na Rua da Praia e aumentar o estacionamento de veículos à noite, é a menos eficiente e mais arriscada dessas medidas. Já apresentamos algumas dessas alternativas nas reuniões do GT ao que o coordenador, Glênio Bohrer, respondeu que essas medidas ultapassariam os poderes do grupo de trabalho, que se propõe meramente a redesenhar o espaço público. Bom, podemos então concluir que não cabe a este grupo preocupar-se com a ocupação do Centro à noite, já que as ações para tal superam o escopo de ações do GT e devemos então nos focar na qualificação dos espaços urbanos, com ênfase no pedestre.
Outro ponto crucial que necessitaria ser modificado no atual projeto da Prefeitura, é que ele não prevê o estreitamento da Dr. Flores. Em uma das reuniões do GT, fizemos uma caminhada pelas ruas em questão e pudemos constatar que só uma das duas faixas existentes na Dr. Flores é utilizada para o fluxo de veículos, a segunda faixa poderia então ser convertida em espaço para os pedestres sem causar grandes transtornos para quem já passa de carro pela região. Glênio Bohrer disse que a questão foi encaminhada à empresa que fez o projeto para verificar a possibilidade da modificação, mas ainda não tivemos nenhuma garantia que ela será implementada. Sem ela, o projeto perde muito, pois a Dr. Flores é, das vias analisadas, aquela onde o trânsito de pedestres é mais complicado por falta de espaço adequado e o trânsito de automóveis têm um espaço muito superior ao necessário.
Um fato interessante da Dr. Flores e demais ruas tratadas no GT — Rua da Praia, Vigário José Ignácio e Marechal Floriano — é que, embora haja uma multidão de pedestres caminhando pela via, compartilhando o espaço com os automóveis, o índice de atropelamentos é zero. Pode parecer paradoxal, mas na verdade isso comprova a tese de que a falta de uma delimitação física clara entre o espaço destinado aos pedestres e aos veículos, incentiva os condutores a ter um comportamento mais prudente que nas vias onde há esse tipo de separação.

É baseando-se nesses princípios que muitas das grandes cidades do mundo estão trocando meio-fio, gradil e intensa sinalização por espaços compartilhados, com pouca sinalização, onde o tráfego de pedestres e veículos se dá no mesmo nível. Foi o que Londres fez na Exhibition Road no bairro de Kensington em 2011, a maior rua desse tipo do Reino Unido, com 820 metros. Uma rua de intenso fluxo de pedestres, com grande afluxo de turistas, onde encontram-se diversos grandes museus da cidade.

O GT tem passado por discussões acaloradas e o quase rompimento do grupo, que mostram uma grande diferença de visão de cidade. A Prefeitura até agora não mostrou intenção de ceder na questão de incentivo à circulação de automóveis à noite, entretanto a Mobicidade não pretende endossar nenhum projeto que traga retrocessos, como a ampliação de vagas de estacionamento e a abertura do calçadão da Rua da Praia para a passagem de veículos. O pedestre tem constantemente perdido espaço para o automóvel nas últimas décadas, fato este que se agravou ainda mais na atual gestão do governo municipal: a rua Gal. Andrade Neves teve suas calçadas reduzidas, a Praça XV de Novembro perdeu espaço para a criação de um estacionamento, o Largo Glênio Peres foi transformado em estacionamento após às 19h, a Rua José Montaury está sendo aberta para a passagem de veículos, o Parque Marinha do Brasil, Parque da Harmonia e a Praça Júlio Mesquita perderam grande parte de suas áreas para o alargamento da Avenida Beira-Rio — só para citar os exemplos mais óbvios. Pouco a pouco, o pedestre vai perdendo espaço de circulação e a cidade vai perdendo seus espaços públicos de lazer e convíveio para a passagem de automóveis. A cidade não pode perder mais nem um centímetro de espaço para o automóvel. O projeto de remodelação das ruas do Centro Histórico é muito caro para nós, mas não apenas o abandonaremos, como faremos de tudo para que ele seja enterrado, caso ele seja distorcido a ponto de trazer qualquer retrocesso na disputa por espaço para os pedestres em Porto Alegre.