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Não é só por 30 segundos — Carta Aberta de Mauri Cruz ao Prefeito Fortunati

Esta carta foi publicada originalmente no Sul21.

Prezado Prefeito,

Que o Brasil vive uma verdadeira revolução social, isto todos nós já nos damos conta. As mudanças estão espalhadas por todos os lados que se olhe, escute ou leia. Eu mesmo ontem (29/04) vivi um momento bem típico deste novo Brasil. Quando retornava da cidade do Rio Grande fui surpreendido por um boqueio da rodovia pelos moradores que atearam fogo em pneus para protestar contra as mortes por atropelamentos que passaram a acontecer com a duplicação da via e pelo aumento de fluxo de veículos que atendem a demanda do Porto de Rio Grande. Passado mais de uma hora sem que a PRF aparecessem para mediar a situação, centenas de trabalhadores do Porto, que retornavam para casa em ônibus fretados que estavam igualmente retidos no protesto, desceram e foram pressionar os manifestantes para que liberassem a pista. Depois de uma negociação tensa, tudo se resolveu. A pista foi parcialmente liberada e o protesto seguiu. Este é o novo Brasil, onde cada brasileiro sente-se protagonista do que está acontecendo. Não há um sentimento de agradecimento a este ou aquele governante, pelo contrário, há um desejo concreto de cada um em assumir o controle dos temas que são de interesse de tod@s.

O senhor poderia perguntar: que relação esta história tem com a aprovação do tempo mínimo de 30 segundos nos semáforos de pedestres em Porto Alegre? Na minha opinião, toda relação. A conquista dos pedestres de terem, no mínimo, 30 segundos de tempo para cruzar uma via é a mesma reinvindicação daqueles moradores que querem o direito de uma travessia segura ou dos usuários do sistema de fretamento que querem o direito de retornar para casa depois de um longo dia de trabalho. Em Porto Alegre, o que a lei pretende garantir é a democratização do espaço urbano que é, legalmente, de todos e que tem sido apropriado, sequestrado, pela parcela da sociedade que detém os automóveis.

Aliás, nunca na história desta cidade ficou tal transparente a divisão que é imposta pelo planejamento da mobilidade, entre os usuários do sistema viário onde aqueles que usam automóveis, tem prioridade absoluta em relação aos demais usuários que estão em outros modos de transportes. A prioridade é tão vantajosa para os automóveis que a simples garantia de 30 segundos para a travessia dos pedestres gerou um caos no fluxo do trânsito. O absurdo é que a culpa do caos foi impingida aos pedestres e não ao excessivo número de veículos que circulam ao mesmo tempo numa mesma via. Diga-se de passagem, que o transporte coletivo sofreu com os congestionamentos porque, também ele, precisa dividir espaço com os automóveis tendo prioridade apenas nos pouco mais de 50 quilômetros de corredores exclusivos que existem na cidade.

É importante que o Senhor reconheça que no segundo dia do denominado teste, o trânsito fluiu melhor, não houve o mesmo caos e a cidade, aos poucos, se adaptou. O dia pode ser considerado quase normal. Aliás, é louvável a capacidade da EPTC em alterar de forma eficiente, em menos de 12 horas, os ciclos de tempos de mais de 200 semáforos demonstrando a grande capacidade operacional da nossa empresa pública. No entanto, é preciso reconhecer, que as alterações comprometeram o sincronismo em várias vias estruturais o que pode ter sido uma das principais causas do caos do primeiro dia do teste.

Aliás, se parte dos usuários dos automóveis decidissem migrar para o transporte coletivo, o que é desejável, tenho convicção que, num primeiro momento, o sistema também sofreria um colapso. Mas, com o tempo, certamente a EPTC saberia adequar a oferta de viagens a nova demanda de passageiros. É isso que iremos assistir mantendo o direito dos pedestres em ter uma travessia segura e tranquila.

Por isso, apelo para que o senhor sancione a lei sem vetos consolidando o direito garantido pela unanimidade dos votos dos vereadores de Porto Alegre. Esta é a decisão acertada. Que oriente a EPTC sobre a necessária tarefa de reprogramar o sincronismo entre os semáforos. E que não se impressione com a pressão expressa pelos meios de comunicação. Infelizmente, grande parte da mídia brasileira ainda não está preparada para um país mais justo e igualitário. Quanto aos motoristas, nos cabe alertá-los que os congestionamentos são provocados pelo excessivo número de veículo e não pelo excessivo número de semáforo para os pedestres.

Como disse inicialmente, o país vive uma revolução social onde o povo brasileiro aprendeu que tem direito a ter direitos. Mais que isso, aprendeu que estes direitos estão garantidos nas modernas leis que os tão criticados parlamentos tem aprovado. Essa revolução democrática é, essencialmente, uma revolução urbana porque é nas cidades onde se materializam de forma mais evidente a segregação e a desigualdade social. A vitória dos pedestres em Porto Alegre deixa claro que não é apenas pelos 30 segundos que a população está mobilizada. Ela quer o direito à igualdade numa sociedade profundamente desigual. Está é, a meu ver, a reflexão necessária sobre a verdadeira mudança que estamos promovendo.

Mauri Cruz é advogado socioambiental com especialização em direitos humanos, professor de pós graduação em direito à cidade e mobilidade urbana. Diretor Regional da Abong, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES/RS.


 

Obs.: O autor da carta menciona um “segundo dia do denominado teste”, até onde temos informação o prefeito cancelou os testes após apenas um turno de experiência. Entretanto concordamos a idéia do autor de que com a permanência dos 30 segundos por mais tempo o trânsito teria fluído com mais facilidade principalmente por dois motivos:

  • Com o tempo a EPTC iria ajustando os semáforos para uma melhor adaptação ao tempo prolongado de travessia para os pedestres. O trânsito é algo extremamente complexo e uma mudança radical não se ajusta com apenas meia jornada de testes. A própria temporização atual dos semáforos é fruto de anos de experimentação e ajustes pela EPTC, e mesmo assim ainda ocorrem congestionamentos com grande freqüência;
  • Com mais tempo, os usuários dos diversos modais de transporte se adaptariam à mudança, que não pode ficar apenas na temporização das sinaleiras. Existe a urgência da implementação de mais faixas exclusivas para ônibus para que ocorra a
    necessária priorização do transporte público, e para que as pessoas tenham uma
    real alternativa para evitar os congestionamentos, que são causados pelo excesso de automóveis particulares, cuja compra é estimulada por incentivos fiscais e pela própria incompetência na gestão do transporte coletivo.

Com ou sem os 30 segundos, priorizar o pedestre é urgente

Jornal Metro, 29 de abril de 2014
Metro, 29/4/2014

 

Embora possa-se discordar se o teste do tempo mínimo de 30 segundos para a travessia de pedestres nos semáforos — que levou o prefeito José Fortunati a anunciar que iria vetar a emenda — foi feito da maneira mais apropriada, não resta dúvida que as pessoas que caminham por Porto Alegre acham que o tempo para travessia em grande parte dos semáforos é insuficiente, tendo havido diversos testemunhos na mídia e nas redes sociais de pedestres que não conseguem atravessar a rua no tempo estipulado atualmente e até mesmo de motoristas de táxi e de ônibus que acham que o tempo para pedestres é pouco. Isso mostra que os parâmetros técnicos utilizados pela EPTC não são apropriados à nossa realidade e ao conceito de cidade para as pessoas.

É preciso uma reavaliação desses parâmetros de modo a colocar a segurança do pedestre acima do mero fluxo de veículos. Isso pode ser feito através de leis, ou pode ser feito apenas com a decisão do prefeito e do Secretário Municipal de Transportes de humanizar o trânsito e adotar outra série de medidas. Enquanto associação e representante da sociedade civil, a Mobicidade tem interesse em participar desse urgente debate – o tempo que perdemos é medido em vidas.

Entretanto, é ilusão pensar que é possível qualificar o trânsito de pedestres sem qualquer tipo de impacto no trânsito de automóveis, pois o fluxo rápido de um grande número de carros particulares é incompatível com a segurança e priorização do pedestre. A cidade precisa fazer escolhas.

Acreditamos que a implementação de uma política favorável ao pedestre tem que ser acompanhada de políticas de incentivo ao transporte coletivo e ao uso da bicicleta. Se houvesse faixas exclusivas para ônibus em avenidas como Loureiro da Silva, Borges de Medeiros, Salgado Filho, Ipiranga, Azenha e Mauá, o impacto negativo do tempo extendido para pedestres no deslocamento do transporte coletivo seria muito reduzido.

Jornal Metro, 30 de abril de 2014.
Metro, 30/4/2014.

Mas isso faria com que os impactos fossem ainda maiores no trânsito de automóveis particulares — essa é a escolha que precisa ser feita. Vamos ficar nos preocupando em garantir a fluidez de um imenso número de carros, que raras vezes transportam mais de uma pessoa, ou vamos nos focar em construir uma cidade agradável para as pessoas, com foco no trânsito de pedestres, ciclistas e transporte coletivo? Esse último é o modelo mais moderno de cidade, que está sendo adotado nas grandes cidades de todo o mundo, e é o modelo que já prevê o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, que diz:

“A Estratégia de Mobilidade Urbana tem como objetivo geral qualificar a circulação e o transporte urbano, proporcionando os deslocamentos na cidade e atendendo às distintas necessidades da população, através de:

  1. prioridade ao transporte coletivo, aos pedestres e às bicicletas;”
Jornal Metro, 30 de abril de 2014
Jornal Metro, 30/4/2014

A grande questão, que ainda falta ser compreendida por parte da população e veículos de comunicação, é que o trânsito de automóveis particulares se auto-regulamenta: se fica muito complicado ir de carro a determinada área da cidade, torna-se mais atrativo usar o ônibus, a bicicleta ou caminhar, e dessa maneira muitos migram de modal e passam a deixar o carro na garagem, até o ponto em que o fluxo de automóveis vai ter uma velocidade aceitável novamente.

Se queremos um trânsito mais eficiente, seguro e humano, precisamos quebrar paradigmas e ter coragem de enfrentar algumas complicações no curto prazo, que trarão enormes benefícios no longo prazo.